O barco começa a se mover. Pela janela vejo pouco a pouco os prédios de Belém ficarem para trás. Metade de meu horizonte é rio – que se faz passar por mar – metade é céu. Uma ou outra gaivota persegue o barco e posa para fotos dos viajantes. A travessia de Belém a Marajó é de três horas e meia. Tempo que se arrasta lentamente como o rio. Parte das águas daqui nasceu nos Andes, viajando com o sonho de conhecer o mar. A baía se alarga e logo as ondas se fazem notar. Pela janela o equilíbrio se foi. Só vejo rio. Depois, acompanhando o balé do barco que não deixa ninguém de pé, só vejo céu. Só vejo o rio. Só vejo o céu. Em meio ao balanço só consigo pensar se não teria sido melhor ter tomado um comprimido de Dramin. E ainda faltam duas horas…
Dentro da balsa, ar condicionado, televisão e vendedores… Tudo para disfarçar o balanço.
E ao longo do rio os barcos vão se sucedendo…
Alguns passam repletos de nossas florestas mortas… Vejam o tamanho do homem no alto de tanta madeira…
SOURE
Ruas largas e arborizadas. Motos, bicicletas, cachorros e búfalos para todo lado. Assim é Soure, capital informal do Marajó, único lugar do Brasil onde os búfalos estão no meio da rua e no prato de comida diário.
Aqui ninguém come boi e, apesar de estarmos em uma ilha, o peixe é a segunda pedida. O prato principal é o búfalo, este boi hipertrofiado que veio da Índia e se sente em casa por aqui. Bife gordo, frito na própria gordura, coberto de mussarela (também de búfala) e servido com banana frita, farofa com castanha, e acompanhado por licor de maracujá com cravo e mel. Só de pensar, fico feliz. Está servido? Se quiser comer bem, experiente as Delícias da Nalva, que tem no cardápio o banquete marajoara (que inclui além do búfalo, o camarão, o caranguejo e os doces regionais) acompanhado por lendas e causos da ilha, como a do Boto e a da Moça Cheirosa. E se o seu marido sumir um dia e voltar no dia seguinte com cheiro de perfume, não o julgue mal. Com certeza foi a Moça Cheirosa, que não fez nada além de dançar a noite inteira com ele, e por isso ele estará tão cansado.
Mas eu vim aqui só para comer? Claro que não. Marajó tem pequenas e simpáticas praias, repletas de guarás, gaivotas, garças e biguás.
Ainda que as barraquinhas, onipresentes em todas as praias do Brasil, já estejam por aqui, os preços ainda não subiram com a maré, e estas são as únicas praias onde você pode chegar montado em um búfalo. Sim, eu fiz o teste drive: não tem os mesmos opcionais de um carro de luxo, mas o motor é potente, o consumo é baixo, tem estabilidade nas curvas e a suspensão também é boa. Me senti um “bullboy” ou um peão marajoara. Os bichos são grandes e assustam, mas por trás daquela cara de mau se esconde um animal delicado, que só quer comer sua graminha e mergulhar na lama o dia inteiro.
Os guias dos búfalos são Nelson e Arigó, morenos queimados, conversa franca, sorriso fácil. Contam das dificuldades do trabalho. Fazem de tudo na fazenda: guiam búfalo, cortam coco, trabalham na roça – paus para toda obra. Contam o valor da diária. Me assusto. “Vinte reais não dá para nada!”. Escuto que em “terra sem emprego, vinte reais pode ser a diferença entre comer ou passar fome”. Fico quieto e olho a natureza.
A praia está cheia de gaivotas. Elas voam, planam, flutuam, e de repente mergulham como torpedos em direção ao alvo, voltando com o bico cheio. Se o peixe foge, a curva é em pleno ar, antes de tocar a água, como numa grande montanha-russa. Posso ficar o dia todo dentro da água, olhando elas mergulharem para pescar… mas minha pele clara não permite nem com litros de protetor – faltou tinta quando eu nasci.
Lá vou eu atrás de outro…
Dois meninos tentam pegar as gaivotas. Se armam de paus, ficam dentro da água e tentam acertá-las. Em vão. Será que o homem é mau desde a infância? Será que nasce conosco este instinto de caça? Para as gaivotas, pouco importa. São muito mais rápidas do que os meninos e parecem brincar de desviar da madeira. De repente, mergulham várias perto dele, quase ao alcance da mão. Chegam a pousar ao seu lado. É fácil acertá-las agora, mas o menino nem tenta. De longe não entendo o que o fez parar… A ausência do desafio ou o encanto perante o presente que a natureza lhe ofereceu? O tempo para e por alguns instantes o lago, menino e gaivotas parecem apenas figuras de um mesmo quadro, pintado por Deus.
CACHOEIRA DO ARARI
Não procure a cachoeira que batiza a cidade, que ela já se foi há muito tempo. Na verdade a cachoeira era uma corredeira, dinamitada há mais de cem anos para permitir a navegação, único meio de se chegar ao povoado onde se criavam búfalos e se vivia bem. Manga, goiaba, cupuaçu, bacuri, maracujá, caju, mamão, mandioca, milho e açaí faziam e ainda fazem o acompanhamento para a carne de búfalo, pescados e caça fartas. É fácil engordar por aqui.
Em Cachoeira do Arari encontrei o Pau do Fuchico… ponto de encontro… Vejam a placa ampliada.
Aos poucos o povoado cresceu e a estrada avançou. Até alguns anos atrás, a lama e a água tomavam conta da pista, intrafegável boa parte do ano. Agora, com o tempo mais seco (até aqui o aquecimento global já interfere) e com boa vontade política de melhorar a estrada, os carros atravessam os 50 km com facilidade, ladeando fazendas e cruzando um rio de balsa para chegar ao Museu do Marajó, programa único para quem gosta de história.
A cidade é mínima, no meio do nada… mas a antena de celular… já é visão onipresente. Até não é minha operadora, mas um dia ela chega… rs…
O Museu é o sonho realizado pelo padre Gallo, italiano que desembarcou no interior do Marajó como missionário jesuíta, e fez dos campos alagados a sua casa. Misturando história, geografia e cultura, o Museu apresenta peças de cerâmica marajoara ao lado de fotografias e peças típicas, como antigas lamparinas, ferramentas e cestos. O popular também encontra seu espaço, com orientações sobre medicina tradicional, lendas e “causos”, feitiços e mandingas.
Para facilitar o entendimento do povo simples local, tudo é interativo. São os “computadores caboclos”, inventados pelo Padre e executados pelo seu Altacir, que nos apresenta o museu. Quer saber o significado de algum nome do Marajó? Escolha a “tecla de madeira”, vire e encontre. Por exemplo: Marajó é “barreira do mar”. Quer saber sobre os povos que viveram na ilha? Vire a grande manivela de madeira e as informações vão se sucedendo os antigos marajoaras. Eu fotografo, mexo nos computadores, faço a “pescaria da saúde” (procuro meu problema, puxo o cartão e encontro a solução através das práticas tradicionais) e ainda sou bicado por uma curicaca que circula no jardim, guardiã do museu. Tudo simples, acessível e instrutivo, como sonhou o Padre Gallo.
Exemplos de computadores caipiras.. Vai girando a manivela e as informações vão aparecendo.
Na frente o nome em tupi, atrás de cada plaquinha a explicação do nome.
Vamos abrindo e descobrindo as informações.
Receita para criança não fazer xixi na cama…
Na saída, bateu fome e vim parar no “Fundo de Quintal”, restaurante da Dona Zezé, também funcionária do museu. Não sei se é sempre assim ou se dei sorte, mas o cardápio era: pirarucu, maniçoba e peru ao tucupi. Por doze reais, não dava para perder, né? Que delícia… Já disse, no Marajó você só engorda. Ah! Não sabe o que é maniçoba? Imagine uma feijoada, com tudo que tem lá dentro, todos os pertences, mas sem feijão, e sim com a folha da maniva (mandioca) moída. Fica um aspecto, digamos assim, meio esquisito, esverdeado, espesso, rústico. Mas é delicioso, depois de superado o desconforto inicial. Para os curiosos, uma informação: a maniva tem ácido cianídrico, venenoso, que só é eliminado após o cozimento por sete dias. Sempre me pergunto quem foi que descobriu isso… fazendo alguém provar dia a dia, até ficar no ponto…
JOANES
Joanes. Encerro minha viagem na antiga vila de pescadores marajoara, que mantém ao lado da igreja, ruínas que testemunham, do alto de uma falésia, a eterna luta do mar contra o rochedo. Dia após dia as ondas, empurradas pelo vento se sucedem na lenta destruição da pedra.
Estive aqui 27 de dezembro… Joanes é tão bonito, que olhem quem eu encontrei já descansando do trabalho do Natal…? Sem o gorro e a roupa vermelha talvez não reconheçam…
Noite, Não escuto barulho de sapos ou grilos. O vento e as ondas discutem para ver quem canta mais alto. O vento sacode as folhas das árvores, que fazem a segunda voz. O mar, barítono, tem fôlego profundo. Fico quieto. A natureza estimula meus cinco sentidos: o cheiro e o gosto do mar chegam até a mim, trazidos pelo mesmo vento que esfrega minha pele, e que canta em conjunto com as ondas, que refletem em meus olhos, a luz da lua, única testemunha desta noite.
Nem fui embora, mas já quero voltar. Saudade no coração.
“Para a maior parte das gaivotas, não é voar que interessa, mas comer. Para esta gaivota, entretanto, não é comer que interessava, mas voar” – Fernão Capelo Gaivota – Richard Bach
Acho que para esta o que interessa é bailar…
Muito boa essa viagem, pude viajar na forma como detalhou.
As fotos estão liiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiindas. Aguçou minha vontade de conhecer a Ilha de Marajó. Creio que só vou fazê-lo quando concluir o doutorado, e com certeza não deixarei de conhecer Joanes.
O Marquinhos está cada dia mais fotogênico. Obrigada por compartilhar suas narrativas e fotos conosco. Mesmo que eu demore um pouco a lê-las, quando o faço, fico maravilhada.
Lindo! A narrativa realmente faz o leitor se transportar para sua viagem… As fotos estão cada vez melhores.
Parabéns e obrigado por compartilhar tanta experiência gostosa de forma tão humana.
Alta, é uma delícia acompanhar suas impressões de viagem. Fotos lindas e texto envolvente. Aguardo por mais!!!
Fotos de perder o fôlego e palavras que nos levam junto…Viajar com vc é de um parzer indescritível. Faço o que posso: reparto com meus amigos!
“Noite. Não escuto barulho de sapos ou grilos…” E vem a poesia pura que vc, só vc sabe fazer!
Um abraço e obrigada sempre!
COM ESTA NARRATIVA, VOCÊ CONQUISTOU MUITOS TURISTAS COM CERTEZA QUE COISA MARAVILHOSA É NO MEU QUINTAL. PARABENS ALTAMIRO VOCÊ MERECEU ESTES MOMENTOS FELIZES, VOLTE UM DIA QUALQUER A QUALQUER HORA DE QUALQUER MANEIRA A ESTA TERRA HOSPITALEIRA..
ALENCARMARAJOARA
Parabéns pelo site e pelas fotos.. Realmente é um paraíso… So uma curiosidade…. Tem uma foto que aparece una antena grande de celular… Saberia MW informar onde ela foi tirada ?? Abraços