Impressões Amazônicas 91

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ALDEIA PEDRA BRANCA
Viajar nos faz presenciar cenas que custamos a acreditar que não saíram somente de nossa imaginação. Esta história aconteceu na Aldeia Pedra Branca, e junta missionários africanos, indígenas brasileiros, uma cruz desmontável, peregrinação de carro, fantasmas e muita fé.

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– Doutor, lá vem a Santa Cruz Peregrina!
Em cada aldeia, a Peregrina chega e a comunidade sai para recebê-la. A entrada da aldeia está repleta de gente. Cruzes miúdas enfeitam pescoços, outras maiores ocupam as mãos de quem até bem pouco segurava estilingues e as grandes indicam bênçãos recebidas – ou promessas sendo quitadas.

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Crianças pulam e brincam até serem reconduzidas a seriedade por um adulto mais carrancudo. O sol que ilumina as cruzes e toda a gente, indiferente a qualquer boa intenção, não dá descanso. “Uma sombra”, “um pouco de água”, “aquieta menino”, talvez sejam os desejos mais frequentes. Talvez não. Povo de pele curtida, habituada ao quente, ao seco, ao longe.

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Não posso esperar a Cruz. Tenho atendimento marcado na aldeia Triunfo, distante cerca de meia hora de carro. A noite vão acontecer missas e espero poder participar.
Além do religioso, a passagem da Cruz Peregrina é um acontecimento social no lavrado, reunindo parentes de várias aldeias. “Bem vindos a Comunidade Indígena Pedra Branca”, saúda a placa. Roupa de festa, camisa social, batom vermelho-paixão, sapato envernizado, laço de fita no cabelo. Parentes se encontram, negociam, conversam, namoram. Festa para os adultos, festa para as crianças: onde ontem brincavam dez, correndo atrás dos passarinhos, hoje brincam dezoito. Se seis meninas jogavam bola, agora são mais de onze, numa festa de gente nova.

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O malocão está cheio, e dois padres dirigem a cerimônia. O sotaque e a cor da pele, escura como a noite sem estrelas, deixam claro que não são do lavrado. Descubro que um é de Moçambique e outro de Uganda – pouco mais do que “lugares-distantes-de-onde-nunca-ouvi-falar” para a maior parte dos assistentes. A missa é envolvente e direcionada aos jovens. Falta a animação carismática, mas a sobriedade combina melhor com o povo de poucas palavras.

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Fico imaginando a força da fé. O exemplo vivo de desprendimento que vem do Cristo e que se repete nos padres, vindos de tão longe em busca de sua missão de vida. Paro para pensar qual é a minha missão e porque eu também estou no lavrado. Porque cada um de nós está onde está? Será que somos fortes como eles? Capazes de escutar um chamado e respondê-lo? Tento escutar a lua, que ilumina esta noite de uma forma especial.

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Depois meu pensamento questiona as motivações da fé para este povo.
Será a vontade de adorar? Quem será, para eles, este Cristo que talvez se confunda com as crenças dos antepassados, contadas de boca a ouvido, em noites ao pé do fogo e família reunida, momentos que não voltam mais nas aldeias invadidas pela energia e violentadas pela televisão.
Será o sonho de uma vida melhor? Aqui ou na cidade? O que é uma vida melhor? Cada sociedade tem os problemas que merece, os dramas que necessita, as violências que tolera. Não adianta mudarmos de lugar achando que tudo vai mudar, se quem precisa de mudanças somos nós mesmos, para encontrarmos a vida melhor dentro da gente.
A esperança de dinheiro? Quem sabe aposentadoria ? – pode ajudar a comprar um rádio novo ou o refrigerante para o bolo do neto. Aqui, aposentar não é parar de trabalhar, pois o trabalho, para quem é da roça, não há de acabar nunca.
Tantas esperanças entregues em oferenda nas três missas que se seguem… A saúde do pai, o bom parto da filha, o emprego do marido, a boa morte do avô. Um mundo sem canaimé.

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O canaimé assombra o lavrado. Se esconde atrás das moitas de caimbé, atravessa da Guyana mítica, onde o vizinho é o estranho e diferente – por isso ameaçador. Invade cada comunidade, e se marca alguém, que este se prepare. Chame pajés, peça a benção do padre, se concilie com a morte, que provavelmente não será boa, que não tarda e não falha. Seu Agostinho acabou de cabeça para baixo dentro do poço. Marize foi atacada na mata, depois encontrada caída, deixando saudade em sua irmã gêmea. E no último mês, Elenilson, dez anos, sumiu de casa. Deve ter bulido onde não devia, e apareceu no curral, amarrado, apertado, com corda no pescoço. Valei-me Santa Cruz Peregrina, limpai o lavrado desta dor.
A polícia federal esteve por aqui. Ouviu família, tuchaua, comunidade. O menino era bom aluno, bom irmão, bom filho. Não tinha vícios, dívidas, amantes, nos dez anos de vida. Por que? A resposta é unânime: “tem corda no pescoço, foi o Canaimé”. Canaimé é bicho ruim, não carece de precisão para fazer a malvadeza”. Chega o Pajé Zé Rodrigues, caboclo de boa conversa e conhecimento na cabeça. Desce a bicicleta do carro e vai rodar o terreno, investigar a região. Não tem dúvida: o bichão veio da Guyana, não pode vir daqui uma maldade tão grande. A maldade maior nunca é nossa, não é mesmo? Ele trabalha, faz fumaça, reza, banha a casa do menino. Aqui o Canaimé não volta mais, mas por via das dúvidas, a Santa Cruz Peregrina também passa aqui. Livrai o lavrado desta dor.


No dia seguinte, cedo, sou acordado com a última missa. Logo a cruz peregrina até a entrada da aldeia. Lá ela é desmontada cuidadosamente e embalada dentro da pick-up, dirigida pelos padres. Em uma seguem a cruz e a bagagem dos participantes do Grupo de Jovens que trabalha na peregrinação. Na outra, a caçamba vira carro de som, e os hinos são cantados ao vivo, com acompanhamento de violão e muita alegria. A Cruz, embalada, está pronta para seguir seu caminho, que hoje já não é mais a pé, como nas antigas procissões, mas motorizado. Junto com ela segue a esperança e os sonhos de um povo sofrido e que espera dias melhores. Fé, emoção e sonhos se misturam a poeira, suor e calor no lavrado de Roraima.

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Chapéu de cowboy, cordão do Flamengo e fone de ouvido. Rosto moreno, queimado de sol, enfeitado pelo riso fácil e pela gentileza. Assim é o pajé Zé Rodrigues, que veio para livrar a região do Canaimé. Tomara que dê certo. Enquanto esperamos o resultado, vendo uma criança com vômitos que eu estava atendendo, ele já deu a dica: sete folhas de ata (fruta do conde / pinha) + 1 chave. Coloque tudo para ferver e faça um chá. O vômito para na hora.

13 01 Pedra Branca (95) 13 01 Pedra Branca (102) Este é o Pajé Zé Rodrigues. Gente boa e preocupado com a comunidade!

Hoje eu estava mais filosófico… agora é hora de ir… Obrigado pela companhia!
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5 comentários Adicione o seu

  1. Daucy Monteiro de Souza disse:

    Altamiro a fé arraigada no povo emana em você hoje como uma ciência. Você indaga, você pensa através dos anos de porfissão nessa terra, nesse povo… Parabéns!

  2. Elis disse:

    Bastante filosófico amigo…sensível ao que viu e viveu….
    Uma pessoa querida uma vez me escreveu assim:
    Ser emotiva é uma dádiva que algumas poucas pessoas desfrutam, a Saber, àquelas cujo a alma conseguiu olhar para vida e enxergar poesia do Criador estampada nela… gente assim é sensível e emotiva. Para todas as outras pessoas a vida é sem cor, sem graça e pesada.(Wesley Blackman).
    Você tem esta dádiva…..e compartilha conosco.
    P.S. a foto da lua esta incrível!!!
    Inté…Elis

  3. roberto teixeira mendes disse:

    Altamiro, tudo muito bonito, a filosofia, os sentimentos, a observação e as fotos; no fundo, tudo uma coisa só. O difícil é ser capaz de expressar os sentimentos de modo a compartilhá-lo; disso, só os artistas são capazes. Uma pena que a arte e a expressividade sejam coisas hoje tão pouco trabalhadas com as crianças. Á s vezes fico aqui pensando se a carência dessa dimensão humana não é hoje mais importante que a própria assistência à saúde. Afinal, de que vale a saúde se não se tem a vida?
    Teixeira

  4. tatiane disse:

    Conheci você em Boa Vista, por indicação do meu cunhado Rubens pai da mariana, levamos nossa filha que estava doente p você olhar, e no decorrer da consulta percebemos o quanto és tão diferente de muitos medicos, vc tem um coração humano. Meu esposo ama esta perto dos indiginas os de rio anaua, com certeza mostrarei p ele o seu site ele vai amar. Eu sou paraense e ele meu esposo maranhese e nossa filha tb. Tivemos tb experiencias com povo indigina. Esperamos vê -lo o ano que vem , pois queremos retornar com vc na clinica da criança, agora não só com rebeca mais outro bebê que ainda naõ sabemos o sexo. São Luís do Maranhão preciso de um medico como vc.

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